Na na na na ... Não, não pode ser real, nem poderia mesmo sê-lo, não é? São oito horas da manhã e havia me deitado à cerca de uma hora atrás, adormeci sob o cansaço e quando isso acontece parece que os sonhos não passam de episódios repetidos, eu volto-me para um lado, o meu corpo arrasta-se sob a cama várias vezes até que me despertam as dúvidas que já me criaste, não consigo deitar-me sem te resolver na minha mente e principalmente sem te haver reconhecido ou não pelo pulsar do sangue. Quero-te arquivar na alma, quero que me rasgues o espírito num âmparo de estrelas.
Ai ai ai ai ai ai ...
Os cigarros acabaram-se, merda, preciso de fumar, preciso de te evaporar, porque os meus dias estão ditados e a minha bagagem já tá cheia, tu não podes nem deves ter espaço no meu inventário. Visto umas calças que já moram no chão há uns bons dias, calço uns ténis, uma t-shirt a precisar de ser engomada, um boné para não ter de me pentear e os óculos para a claridade da marginal manhã que teima em se impôr e saio para ver se um ou mais um cigarro me faz esquecer-te, por fim adormecer com um sonho qualquer diferente daquele que me fez acordar para a gula que tenho por ti.
E outra vez, o sonho ou o pesadelo, como quem o quiser catalogar ... Agora parece que ganhou vida própria e se multiplica por mim, mais um cigarro pode ser que isto passe ...
Se tu quiseres ...
Meu bem ... vamos brindar a vida esta noite, a nossa. Recolhe todos os estores para vermos as fugas dos gatos às primeiras gotas de chuva, vamos vê-los arriscar a sétima vida ao saltarem dos telhados para se abrigarem da crescente concentração de gotas pesadas de choro. Um choro feliz e manso, um chorar de celebração.
Deixa ir os teus pés descalços pelo chão, empoeirado de uma semana, que é frio aos primeiros toques da pele que arrepiam a espinha do meu corpo quase como quando tu me sussuras ao ouvido, como quando formulas aquelas covinhas ao sorrires feliz, ainda vamos a tempo de ver as estrelas se transformarem num só pano de fundo da tempestade que se avizinha. Deixa sujar os pés nús até porque o tempo têm de deixar as suas marcas.
Observa a chuva a cair nos vidros das nossas janelas, que bárbaro, apressa-te e abre as janelas, meu bem, deixa essas gotas entrarem, deixa que elas nos inudem de frescura, de humidade, de cheiro a terra molhada. Permite que elas salpiquem o meu corpo e o teu, elas que nos invadam trazidas pelo vento cúmplice de atentado.
Dá-se um impasse no bater do meu coração quando o primeiro trovão se faz anunciar e a tua mão pousa na minha fazendo o meu medo virar uma brisa de chuva. Depois de ter largado tudo e ir contigo para o mundo viver a nossa felicidade nunca mais tive medo de ir à janela ver as cores dos relâmpagos que agora se juntam a nós, numa festa colorida e vibrante na fotógenia textual cenográfica dos teus gestos hómonimos aos meus.
Vivemos um amor de fita de cinema, desfrutamos de paragens incertas por estradas desconhecidas. Não há ninguem nas janelas vizinhas que possa destruir o nosso amor, somos eternos num segundo, somos, para todo o sempre, gotas que caem lá fora e por toda a presença enquanto me beijas as costas nuas. Numa mão levas-me os sonhos e na outra afagas os meus cabelos. Levo-te ao chão, ouvimos a chuva cair nos telhados, eu vou destruir a fronteira que me separa do teu país estrangeiro, levarei a minha bandeira para conquistar o território selvagem.
Agora sim, a casa escura, as janelas abertas, a chuva pertinentemente entra a convite nosso, os nossos corpos no chão erroscados, as ideias a flutuarem, o teu sorriso a iluminar-me, só falta mesmo um banho de chuva para que o nosso amor seja digno de cinema. Pronto para uma pós-produção tua.
Se tu quiseres, se tu quiseres, se tu quiseres ...
Dás-me a mão e eu levo-te descalço a viver um amor desses de cinema, sempre a banhos de chuva, garanto-te que não te vai faltar amor. Também, se ao longo do dia a conversa se render eu inventarei palavras só para tu escutares. Nesse mapa só nosso, quando atingirmos todas as fronteiras prometo que te desenho novos caminhos, que nos levarão sempre de volta aonde chove pois precisamos é de tomar um banho de chuva.
Na manhã o sol teima em continuar a raiar em pleno Outubro, mas eu ando pela chuva que me encharca, que me adoece. Não tenho a tua mão na minha enquanto caminho por isso a chuva é só a teoria do ciclo da àgua que se forma da humidade e se evapora até as nuvens atingirem o seu ponto de saturação e assim choverem. Depois de mais um cigarro, lembro-me do que sinto quando tu estás mais do que perto, do que tremo quando a te peço o isqueiro emprestado e a minha mão toca de raspão na tua, de fazer uma ginástica ocular por espreitar do canto do olho o teu sorriso cheio de estrelas. Apagado o cigarro, quero destruir-te como se fosses um rascunho, rasgar-te em mil pedaços de papel porque eu tenho de iniciar o meu caminho à chuva, não te posso esperar para vires comigo porque afinal não passas de talvez uma ilusão dos dias quentes. Fica apenas o sonho de um dia tornar a nossa vida num amor de cinema, num banho de chuva.