segunda-feira, março 12, 2007

O teu sorriso

A noite já ia bebida, já havia vagueado horas a fora pelas pedras da calçada da Lisboa cidade e moça, do alto à baixa. O cansaço de uma vida já me pesava nas pernas, já teria ido embora à mais tempo para o palco dos meus sonhos se não fossem os companheiros da tasca a pedir mais uns copos.

As minhas noites tornaram-se um flash de acontecimentos vários que misturam o passado num presente muito viajado para um futuro condicional ao voltar ao presente, mas a minha visão torna-se clara quando tudo parece turvo aos meus olhos. A minha respiração já ofegava pela minha sombra que tinha sede de ouvir um estranho silêncio só meu e de mais ninguém. Já não me desculpava porque eu já não tinha desculpas, já não me posso perdoar das tantas lágrimas que me turvam os pensamentos pois os meus olhos já não conseguem chorar.

De repente, um estranho cheiro a sangue, a morte, a abandono, e volta o sangue que escorre na calçada que sobe e sobe tudo num só folgo de sopro, o atrito do alcatrão estanca lentamente e vorazmente o sangue húmido quente que vai arrefecendo na descida alucinante da calçada que sobe e sobe até chegar ao cimo de um nada vazio estranhamente oco. Subitamente, o olfacto desperta o vício, acrescenta-se um estranho líquido na boca como se apetecesse lamber o chão, em vez disso, descalço os sapatos, lentamente como manda o realizador supremo, com os olhos fixos no horizonte da calçada, violentamente os atiro sem saber em que parte eles se vão perder, e uma vontade súbita de correr de encontro ao sangue que escorre na calçada que sobe e mais sobe até se perder a vista, num impulso os meus pés nus chapinham na poça de sangue que se concentrou e se atrasou em relação aquela parte que já escorre, eles pulam e saltam como se dançassem às ordens de uma brisa senhora suprema salpicando a minha pele que ainda não suava mas já libertara pequenas petículas de um suor frio que constratava com a temperatura do meu corpo. Um suspiro, um gemido, de prazer, de dor e no final um grito, e é nesse seguemento de segundo em que a alma se liberta do corpo para ir ao encontro da balança do Criador, o corpo jaz caído numa fotografia rasgada com partículas de vidros espalhadas pela brisa senhora suprema. A minha alma não tem tempo para vaguear uma vez mais pela calçada que sobe e mais sobe pelos olhos de quem a vê, antes é empurrada como que sugada para o túnel que se encontra à direita da esquerda de quem vem do centro. Sim, é aí e só aí, onde ela se arrasta até chegar ao clarão, que vislumbro a batida da vida em mais flash's variados pendurados em molduras várias umas mais acima do que outras, umas apenas caídas pelo chão, vários sons que se confudem, coincidem, se misturam, ecoam pelo túnel a fora, numa sinfonia ensurcedora desalinhada da pauta listada. Quase a chegar ao clarão, a alma, é arrastada violenta e velozmente para trás e para a frente num movimento perpétuo e repetido até ter absorvido todas as emoções que figuram os retratos mas depois pára tudo e a alma encontra-se frente ao clarão com a brisa senhora suprema a contorna-la em círculos invisiveis e perpétuos. Agora atravessa se tiveres fé ...

Já iamos embora da última caixa de música, quando me lembrei de olhar uma vez mais para trás e vejo-te a ti e ao teu sorriso, a tua cara era-me familiarmente estranha, voltei-me para a frente mas o teu sorriso consumiu-me o prazer, e voltei a olhar-te mais uma vez, continuava a andar e mais uma vez olhava para trás para revistar o teu sorriso, desta vez tu deste a entender que já tinhas reparado todas as outras vezes em mim e foi desta vez que me sorriste com vontade de sorrir para mim. Ficamos no hall, em olhares e sorrisos vários, num impasse de compasso de espera. Aí tudo ficou claro nos meus olhos turvos. Eu saí e tu voltaste a trás mas não sem antes me teres tocado a alma profundamente. A minha boca ficou com sede do teu sorriso. Cheguei a casa despi-me e cantou-me o Carlos do Carmo 'Um homem da cidade' ao ouvido até eu adormecer.
Quis sonhar contigo, esforcei-me tanto que dava voltas e revolvia todo o meu corpo na cama mas nada, apenas nublado com 99% de probabilidade de chover.
O dia acordou-me a sorrir, e a minha mente devolveu-me a fotografia do teu sorriso que me tinha omitido toda a noite passei o dia a coser pedaços de sonhos vários.
Voltei para a noite, porque a noite bem-me-quer quando mal-me-quer, fui tomar um café, quando te vejo a ti e ao teu sorriso, pensei que estava a sonhar, belisquei a minha pele, e desta vez não perdi tempo fui atrás de ti, corri para te encontrar, e cruzámo-nos uma vez mais, e uma vez mais aquele compasso de sorrisos e olhares vários mas a minha boca não conseguiu mover a língua para falar e quando dei por mim já tu tinhas ido. Quem és tu que fazes tudo parecer claro aos meus olhos turvos? Que sorriso é esse? Apenas um pedaço de céu, de sonho?

3 comentários:

Pralaya disse...

A tua escrita é fantastica, continua a escrever pois cada vez que leio algo teu quero mais e mais.

Anónimo disse...

uau. grandes palavras e excelente escrita, és caixinha de surpresas estou a ver

Unknown disse...

Não me vais deixar envergonhado pois não?